Origem e Trajetória.
No Brasil atualmente muito se tem discutido sobre as tradições culturais populares… Costumes, crenças, rituais, valores, danças, festas, literatura, folclore, relacionamentos, etc. que envolvem toda uma sociedade. Em outras palavras, cultura popular é tudo aquilo que o povo produz e participa de forma ativa. No Ceará, por exemplo, as mais conhecidas são maracatu, pastoril, cordel, bumba meu boi, cabaçais do cariri, torem, pau da bandeira, vaquejada e maneiro pau.
Tendo em vista o advento de outras culturas e a adesão às mesmas pela sociedade, faz-se necessário o resgate da cultura local como forma de preservar a identidade cultural de um povo. Dentre todos os municípios que compõem o baixo vale Acaraú, Bela Cruz tem sua particularidade no fomento à cultura em especial a Cultura Popular – REISADO – objeto de pesquisa e investigação desse trabalho.
Bela Cruz, município que fica a aproximadamente 240 km de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, é um município ainda muito jovem e segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, existiam 32.591 habitantes (2019).
No que contam os escritos de Nicodemos Araújo (Cronologia de Bela Cruz, 1990, pág. 17). “(…) o Pe. Luís Figueira, (…) foi o primeiro homem civilizado de origem européia a palmilhar a terra belacruzense. Quase um século depois, chegariam os primeiros colonizadores brancos para fixar na região (…)”. Isso se deu no início do século XVII.
As raízes culturais de Bela Cruz estão entranhadas na história de Almofala (Itarema) e Acaraú da qual se emancipou há 62 anos. Assim como relata a história, estabeleceram-se diversos colonos portugueses, mais ou menos em meados do século XVIII por esta região, a qual já havia os índios Tremembés. Almofala era a Freguesia (até 1832, depois 1838 a 1842) na época onde estavam aldeiados os Tremembés (1608), próximo às margens do rio Aracati-mirim, posteriormente, com o desenrolar da história a Freguesia passa a ser Acaraú (1832 a 1838 e após 1842) o que demonstra o crescimento do leste para o oeste em direção ao rio Acaraú, onde em sua margem esquerda está localizado o município de Bela Cruz. Temos certeza de que a mistura dessas culturas – portuguesa-indígena – são as bases para o reisado em nossa região, pois entre os folguedos praticados pelos índios Tremembés está presente a manifestação mencionada. Isso se confirma durante as entrevistas que realizamos com as Companhias de reisado: “O reisado está vinculado à cultura indígena de nossa região.”
No que pudemos constatar o primeiro grupo folclórico de reisado, organizou-se no mês de janeiro de 1900 que atuou vários anos. No decorrer do tempo, outros grupos tiveram atividades: Reisado do Camilo Furtunato, reisado dos Marques, reisado do João Diogo, reisado do Manoel Lúcio e reisado do Moacir Elizeu. “(…) O grupo de apresentadores compunha-se de: Velho, Velha e 4 ou 5 Mascarados. Em regra geral as máscaras eram feitas de pele de mambira, com barbas de embira de carnaúba. O dono da casa, que era chamado de Capitão, fechava a porta da frente, para receber o grupo, que ao chegar, cantava versos como estes:
Ô de casa. Ô de fora
Mangerona, quem ta aí?
Foi o cravo que chegou,
E a rosa não quer sair.
Esta casa está bem feita
Por dentro, por fora não.
Por fora, cravos e rosas;
Por dentro, manjericão”.
Em seguida a porta era aberta, e a função tinha início com um sapateado, mesmo na sala, executado pelos melhores elementos do grupo, nesta modalidade coreográfica. A seguir o folguedo continuava no terreiro onde era feita a exibição dos bichos. Estes eram apresentados dentro do programa traçado. Pela ordem, vinha o Boi, depois a Burrinha, depois o Bode e em sequência, o Cabeçudo, a Ema e o Bicho-caçador. Todos esses personagens tinham seus versos próprios, e eram muito aplaudidos em suas exibições.
“Os Mascarados usavam atirar lenços nas pessoas presentes. Era “a sorte”, que sempre rendia alguns trocados. Os namorados eram sempre os mais atingidos pelos lenços da sorte. (…)” (adaptação nossa do Livro Município de Bela Cruz – Nicodemos Araújo, 1985, pág. 102.)
Por volta de 1941 o jovem Rafael Ferreira Ramos, nascido em Crôa Grande, Acaraú – Ceará em 18 de janeiro de 1927 fundou seu Grupo de Reisado em São Gonçalo – Bela Cruz – Ceará. Sua história de vida revela uma grade trajetória dedicada ao Reisado nesse município. O Mestre Rafael começou com 10 anos de idade quando uma Senhora por nome Agda Brás recrutou 05 crianças da mesma faixa etária, sendo elas: Manoel, Miguel, Fernando, Manoel Cirilo e Rafael Ramos. Isso se deu no ano de 1937 em Crôa Grande, município de Acaraú – Ceará.
A Senhora Agda Brás mesmo com limitações devido à idade comprou tecido e cobriu os bichos (boi e burra), com embira de carnaubeira revestiu o bode e usando penas de galinha, fez a jaçanã. Sendo assim, o grupo era formado por 06 personagens, pois os garotos também faziam o velho e a velha do Rêso. Segundo o Mestre Rafael Ferreira Ramos, a inspiração veio de uma história Bíblica que narra à viagem dos 03 Reis Magos a Belém. Felizes da vida por terem visto o “Salvador do Mundo” – JESUS CRISTO, Belchior, Baltazar e Gaspar ao retornarem a sua terra, promoveram uma grande festa a qual ficou conhecida como – REISADO. Os bichos representam os animais que estavam no estábulo onde Jesus nasceu: Boi (substituindo a vaca), burra (substituindo o jumento), jaçanã (substituindo o galo), bode (substituindo o carneiro), o velho e a velha representando os Reis.
E assim, dentro desta estrutura, a Companhia de Reisado de São Gonçalo, a partir de 1941, sob o comando do Mestre Rafael ganha fama e prestígio, sendo requisitada em todo o Vale do Acaraú. Com a velhice, o Mestre Rafael repassou o grupo a seus familiares que com muito esforço diante das dificuldades (ausência de apoio financeiro) mantém viva a COMPANHIA até hoje. No decorrer dos anos o grupo acrescentou alguns personagens: Caburé, Ema, Caçador, Cavalo-marinho e Mascarados. No entanto, com o tempo e diante da dificuldade em encontrar pessoas que protagonizassem alguns dos bichos, muitos vão saindo de cena. Atualmente, o grupo apresenta os mascarados, velho, velha, caçador, boi, burra, jumento, caburé e bode.
A manifestação, muito apreciada pelo povo que vinha de todos os lugares da região (Vale do Acaraú) contratar e assistir o trabalho artístico do Mestre Benedito (sobrinho do mestre Rafael) e companhia, cujo início se dava às 21 horas e se estendia pela madrugada inteira, finalizando com a matança e distribuição das partes do boi através de versos improvisados. Sem perder as origens, o Reisado em Bela Cruz sempre foi e é apresentado em um espaço aberto, geralmente na zona rural ou áreas periféricas da sede, no período de 06 de janeiro até o sábado de aleluia. O evento mobilizava toda a vizinhança, na ocasião, alguns montavam barraquinhas de venda com quitutes da terra e bebidas.
As Companhias de reisado atuais têm 08 componentes (todos homens), dentre eles músicos (pandeireiro e violeiro), cantadores (mascarados, também chamados de papangus) e dançarinos que se revesam na apresentação das personagens. O início se dá como nas origens… com um sapateado executado pelos elementos do grupo. A seguir o folguedo continua no terreiro onde é feita exibição dos bichos por meio de versos improvisados durante toda a apresentação, motivando o público presente. Aos poucos os bichos vão entrando pela ordem abaixo, fazem sua apresentação e saem.
1. Bode:
“Pisa, pisa Bode velho.
Chiquero Bode!
O senhô pode pisá
Chiquero Bode!
E que vim lá de São Gonçalo
Pra mode me apresentá
Chiquero Bode!
E na Terra de Bela Cruz
Chiquero Bode!”
2. Jumento:
“Meu jumento, meu jumento
Que eu comprei lá no Pará
Quem tem um jumento desse
Não precisa trabalhá.
Pisa, pisa meu gobira
Que eu trouxe do meu lugá”
3. Burra:
“Dança, dança Burra velha
Que eu comprei no meu lugar
Faz um trabalho bunito
Pru povão apreciá
Hoje aqui em Bela Cruz
Nóis tira o primeiro lugar
Quando você fala
que o Benedito morreu
Pode escrevê num papel
Que a semente se perdeu
Muita gente nesse mundo
Quer manda com verso meu”
4. Cachorro-caçador (canta o mesmo repente do bode, só muda a entoada)
5. Caburé:
“Caburé da mata farol
Estamo no inverno
Pra que se quer sol? (bis)
Caburé bunito da mata farol
Caburé lá do tico-tico
Se tu for simbora
Mais quem é que eu fico?
Vai tu brincá descente mais o Bendito”
(…) O Boi – último a entrar no terreiro, também o mais aguardado pelo público presente.
“Rebana meu Boi
Tu podes brincar.
Rebana a coberta
Pru cima do ar
Tu faiz bunitinho
Pru povo olhar
Olé Boi bunito
Manim-surubim
Abaixa a cabeça
Levanta o cupim
Repente bem feito
Se solta é assim”
O velho ajuda os Mascarados a cantar os versos, e a velha só dança e faz a alegria da molecada, ficando no círculo durante toda a exibição. Com uma temática escolhida pelo contratante do espetáculo, os componentes vão improvisando os versos na entoada de cantoria, acompanhadas por um violão e um pandeiro confeccionado manualmente pelo grupo usando o couro de boi ou cachorro e madeira nativa, sem deixar de lado é claro, o sapateado que lembra as danças indígenas.
Sobre os bichos (personagens), esses são também confeccionados pelos próprios componentes do grupo. Para o boi, costuma-se usar tecido com estampas de flores bem grandes e coloridas. O cachorro-caçador é recoberto com tucum (retirado da palha da carnaubeira). Para as cabeças dos animais, usa-se a madeira esculpida, chifres dos próprios animais e a ossada da face do boi ou vaca recobertos com tecido nas cores preto ou marrom. O corpo dos animais é feito de cipó e madeira nativa, já as máscaras são confeccionadas de papelão ou plástico e bem enfeitadas. O Caburé é uma cabaça grande com desenhos feitos com furos, aparentando caras de gatos ao seu redor. No momento é acesa uma vela dentro da cabaça, destacando a figura sinistra sob a cabeça do dançarino.
Hoje, diante da “modernidade”, os valores são modificados pela sociedade e como consequência a Companhia de Reisado de São Gonçalo a cada ano que passa é menos solicitada, embora venha resistindo ao tempo. Manifestação nascida nas primeiras décadas do século XX, conforme o próprio testemunho do maior artista popular que esse município já conheceu – MESTRE RAFAEL FERREIRA RAMOS (in memorian). Mas, a sociedade belacruzense vem esquecendo suas tradições, costumes… o que ocasiona perda de identidade cultual – in locum – pelo fato da apropriação de “outras culturas”. Por outro lado, resgatar a tradição e costumes do povo belacruzense, mantendo de forma fiel suas características, tais como: a habilidade da arte de improvisar (repentes), a capacidade de superar obstáculos (recursos financeiros) e a criatividade quando fazem adaptações dentro de suas necessidades, como por exemplo, o uso do violão na manifestação cultural – REISADO dando uma característica bem regional, é possível.
Para o resgate da expressão cultural – REISADO, fez-se necessário percorrer vários caminhos. Caminhos estes que comprovaram a origem, estrutura e dificuldades pelas quais passavam o objeto da pesquisa. Dessa forma, recorreu-se às pesquisas bibliográficas – a principal fonte foram os registros históricos de um belacruzense, poeta e escritor Nicodemos Araújo que procurou evidenciar em seus livros, o modo de vida, cultura, economia, política, religião, etc. de vários municípios do baixo vale Acaraú, dentre eles o município de Bela Cruz – CE. Também se fez uso da pesquisa de campo e entrevistas a sujeitos diversos na sede e zona rural (localidades). Dentre essas entrevistas, destacamos o testemunho ainda em vida do Mestre Rafael, suas palavras foram de extrema importância para a conclusão de nossa pesquisa e a partir de então, pudemos comprovar que de fato o REISADO é a raiz cultural de nossa gente. E por que não dizer: patrimônio imaterial dos belacruzenses.
Marcos Pires – Graduado em Português/InglêsPós graduado em Gestão Escolar, Gestão Educacional e Ciências da Educação.
Rosimeire Freitas – Graduada em História e Geografia; Pós graduada em Direitos Humanos.
Obrigado ao CEIAM pela oportunidade.